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Clínica EVCITI

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A história das encefalites autoimunes e síndromes neurológicas paraneoplásicas

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Há pouco mais de meio século, a medicina começou a investigar uma nova questão. Um câncer distante poderia causar sintomas neurológicos, mesmo sem invadir diretamente o cérebro? Essa pergunta marcou o início da história das síndromes neurológicas paraneoplásicas — um grupo de doenças em que o sistema imunológico acaba atacando o próprio sistema nervoso em decorrência da presença de uma neoplasia.

As síndromes paraneoplásicas são condições em que o sistema imune reage a um câncer de forma equivocada. Normalmente, o sistema imune nos protege, reconhecendo células estranhas — como vírus, bactérias ou células tumorais — e as destruindo. No entanto, em alguns tipos de câncer, o tumor pode expressar moléculas (antígenos) que, por coincidência, são muito parecidas com proteínas normais de algumas regiões do corpo, como as do sistema nervoso (cérebro, medula espinhal ou nervos). É como se o sistema imunológico “confundisse o inimigo com um amigo”: o alvo inicial é o câncer, mas o ataque acaba se estendendo aos tecidos saudáveis do próprio corpo. Curiosamente, em muitos casos, os sintomas neurológicos aparecem antes mesmo do diagnóstico do câncer, o que pode ajudar os médicos a detectar tumores ainda em estágios iniciais.

Nos anos 1950, neurologistas e patologistas começaram a observar pacientes com câncer de pulmão, mama ou ovário que desenvolviam sintomas neurológicos incomuns — confusão mental, perda de memória, convulsões, desequilíbrio e fraqueza muscular. Já se suspeitava que havia algo além da simples presença do tumor: um processo “remoto”, mediado por uma resposta imune equivocada. Foi nessa época que surgiram as primeiras descrições clássicas, como a encefalite límbica e a degeneração cerebelar paraneoplásica.

Nas décadas de 1980 e 1990, surgiram as primeiras evidências concretas de que anticorpos específicos produzidos pelo sistema imune poderiam estar por trás dessas doenças. Foram identificados os chamados anticorpos onconeurais, como o anti-Hu, anti-Yo e anti-Ri, que se tornaram marcadores importantes das síndromes paraneoplásicas. A ideia de que o sistema imunológico poderia causar danos seletivos a regiões específicas do sistema nervoso começou, então, a se consolidar.

Nos anos 2000, uma nova revolução começou. Pesquisadores como Josep Dalmau e Francesc Graus (Barcelona, Espanha) ajudaram a inaugurar a chamada era das encefalites autoimunes. A descoberta dos anticorpos contra receptores de superfície neuronal, como o anti-NMDA, em 2007, mudou completamente o entendimento da relação entre o sistema imune e o cérebro. Esse anticorpo inclusive ganhou atenção quando foi relatado na história da jornalista americana Susannah Cahalan, que desenvolveu encefalite anti-NMDAr, e posteriormente descreveu sua experiência no livro “Brain on Fire: My Month of Madness” publicado em 2012, que também foi adaptado ao cinema. Diferentemente dos anticorpos onconeurais, esse novo grupo atua diretamente sobre receptores da superfície dos neurônios, podendo causar sintomas psiquiátricos, crises epilépticas e alterações de consciência — e, o mais surpreendente, muitos casos são potencialmente reversíveis com imunoterapia. Desde então, dezenas de outros anticorpos foram descritos, como LGI1, CASPR2, AMPAR, GABAaR, GABAbR, DPPX e mGluR5, cada um associado a um quadro clínico específico.

Algumas encefalites autoimunes e síndromes paraneoplásicas já eram conhecidas muito antes da descoberta dos anticorpos. No final do século XIX, havia relatos de condições como a “coreia miofibrilar de Morvan”, uma síndrome caracterizada por contrações musculares involuntárias e repetitivas, insônia e alterações autonômicas — hoje conhecida como síndrome de Morvan, um quadro neurológico autoimune ligado a anticorpos contra proteínas associadas a canais de potássio dos neurônios (anti-CASPR2), descritos apenas em 2011.

Em 1956, Moersch e Woltman descreveram outro quadro enigmático: a síndrome da pessoa rígida (Stiff-Person Syndrome), marcada por rigidez muscular e espasmos. Apenas em 1988 foi descoberta sua associação aos anticorpos anti-GAD. Embora hoje se saiba que essa condição afeta predominantemente mulheres (cerca de 70% dos casos), ela foi descrita pela primeira vez em 14 homens, recebendo inicialmente o nome de “síndrome do homem rígido” (stiff-man syndrome).

Atualmente, o conhecimento sobre as encefalites autoimunes e as síndromes neurológicas paraneoplásicas é fruto de décadas de investigação e colaboração entre neurologistas, imunologistas e pesquisadores de todo o mundo. Se antes essas doenças eram vistas como “mistérios neurológicos sem cura”, hoje são condições tratáveis e, em muitos casos, reversíveis, quando diagnosticadas precocemente. A história dessa evolução é, em essência, uma prova de como o entendimento do sistema imunológico transformou o cuidado neurológico — e de como a ciência continua a desvendar, pouco a pouco, os segredos da relação entre o corpo, o cérebro e o sistema imune.

Por Dr. Eduardo Tieppo